domingo, 3 de outubro de 2010

Pensamento... (8)

"A idéia do eterno retorno é uma idéia misteriosa, e uma idéia com a qual Nietzsche muitas vezes deixou perplexos outros filósofos: pensar que tudo se repete da mesma forma como um dia o experimentamos, e que a própria repetição repete-se ad infinitum! O que significa esse mito louco?

De um ponto de vista negativo, o mito do eterno retorno afirma que uma vida que desaparece de uma vez por todas, que não retorna, é feito uma sombra - sem peso, morta de antemão; quer tenha sido horrível, linda ou sublime, seu horror, sublimidade ou beleza não significam coisa alguma. Uma tal vida não merece atenção maior do que uma guerra entre dois reinos africanos no século XIV, uma guerra que nada alterou nos destinos do mundo, ainda que centenas de milhares de negros tenham perecido em excruciante tormento.

Algo se alterará nessa guerra entre dois reinos africanos do século XIV, se ela porventura repetir-se sempre, retornando eternamente?

Sim: ela se tornará uma massa sólida, constantemente protuberante, irreparável em sua inanidade.

Se a Revolução Francesa se repetisse eternamente, os historiadores franceses sentiriam menos orgulho de Robespierre. Como, porém, lidam com algo que jamais se repetirá, os anos sangrentos da Revolução transformaram-se em meras palavras, teorias e discussões; tornaram-se mais leves que plumas, incapazes de assustar quem quer que seja. Há uma diferença infinita entre um Robespierre que ocorre uma única vez na história e outro que retorna eternamente, decepando cabeças francesas.

Concordemos, pois, em que a idéia do eterno retorno implica uma perspectiva a partir da qual as coisas mostram-se diferentemente de como as conhecemos: mostram-se privadas da circunstância atenuante de sua natureza transitória. Essa circunstância atenuante impede-nos de chegar a um veredicto. Afinal, como condenar algo que é efêmero, transitório? No ocaso da dissolução, tudo é iluminado pela aura da nostalgia, até mesmo a guilhotina.

Não faz muito tempo, flagrei-me experimentando uma sensação absolutamente inacreditável. Folheando um livro sobre Hitler, comovi-me com alguns de seus retratos: lembravam minha infância. Eu cresci durante a guerra; vários membros de minha família pereceram nos campos de concentração de Hitler; mas o que foram suas mortes comparadas às memórias de um período já perdido de minha vida, um período que jamais retornaria?

Essa reconciliação com Hitler revela a profunda perversidade moral de um mundo que repousa essencialmente na inexistência do retorno, pois, num tal mundo, tudo é perdoado de antemão e, portanto, cinicamente permitido.

Se cada segundo de nossas vidas repete-se infinitas vezes, somos pregados à eternidade feito Jesus Cristo na cruz. É uma perspectiva aterrorizante. No mundo do eterno retorno, o peso da responsabilidade insuportável recai sobre cada movimento que fazemos. É por isso que Nietzsche chamou a idéia do eterno retorno o mais pesado dos fardos (das schwerste Gewicht).

Se o eterno retorno é o mais pesado dos fardos, então nossas vidas contrapõem-se a ele em toda a sua esplêndida leveza.

Mas será o peso de fato deplorável, e esplêndida a leveza?

O mais pesado dos fardos nos esmaga; sob seu peso, afundamos, somos pregados ao chão. E, no entanto, na poesia amorosa de todas as épocas, a mulher anseia por sucumbir ao peso do corpo do homem. O mais pesado dos fardos é, pois, simultaneamente, uma imagem da mais intensa plenitude da vida. Quanto mais pesado o fardo, mais nossas vidas se aproximam da terra, fazendo-se tanto mais reais e verdadeiras.

Inversamente, a ausência absoluta de um fardo faz com que o homem se torne mais leve do que o ar, fá-lo alçar-se às alturas, abandonar a terra e sua existência terrena, tornando-o apenas parcialmente real, seus movimentos tão livres quanto insignificantes.

O que escolheremos então? O peso ou a leveza?

Parmênides levantou essa mesma questão no sexto século antes de Cristo. Ele via o mundo dividido em pares opostos: luz/escuridão, fineza/rudeza, calor/frio, ser/não-ser. A uma metade da oposição, chamou positiva (luz, fineza, calor, ser); à outra, negativa. Nós poderíamos achar essa divisão em um pólo positivo e outro negativo infantilmente simples, não fosse por uma dificuldade: qual é o positivo, o peso ou a leveza?

Parmênides respondeu: a leveza é positiva; o peso, negativo.

Tinha ou não razão? Essa é a questão. Certo é apenas que a oposição leveza/peso é a mais misteriosa, a mais ambígua de todas."


Milan Kundera, in A insustentável leveza do ser.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Em alguma parte alguma

Para o ódio de uma amiga, eu hoje venho com um livro do Ferreira Gullar. De modo a não irritá-la e para que eu possa falar do que eu realmente quero, pularei a parte biográfica.

Seu último livro, lançado recentemente, foi para mim uma grande surpresa. Em alguma parte alguma foi definitivamente muito mais do que eu esperava.

Seus poemas abordam vários assuntos. Desde bananas que apodreciam na venda de seu pai e que deixaram no poeta memórias, até aranhas em livros, universos e a fragilidade da consciência. Talvez a importância e minha afinidade com esse livro foram muito pessoais, mas acredito que o livro consiga ter um significado especial para cada um. Talvez essa seja a grande mágica dos livros. E de todas as formas de arte.

Sinceramente, eu me perdi muito no que ia falar e para evitar sair falando bobagens que poderiam acabar tirando o interesse pela leitura, eu vou copiar alguns trechos preferidos...


FICA O NÃO DITO POR DITO

(...)

mas é que

antes de dizê-lo

não se sabe

uma vez que o que é dito

não existia

e o que diz

pode ser que não diria


(…)


assim

o poeta inventa

o que dizer

e que só

ao sabê-lo

vai saber

o que

precisava dizer

ou poderia

pelo que o acaso dite

e a vida

provisoriamente

permite


UMA PEDRA É UMA PEDRA

(…)

e assim

o homem tenta

livrar-se do fim

que o atormenta


e se inventa


Em Alguma Parte Alguma

Ferreira Gullar

Ed. José Olympio


terça-feira, 7 de setembro de 2010

Alfredo da Rocha Vianna Filho

"Meu nome completo é Alfredo da Rocha Vianna. Nasci em 23 de abril de 1898, no bairro da Piedade. A rua não posso precisar. Para o meu irmão Léo foi na Rua Alfredo Reis, mas para o João da Baiana e o Donga, foi na Rua Gomes Serpa. O número da casa ninguém sabe ao certo. Só vendo o registro de batismo feito na Igreja de Santana. Meu pai chamava-se Alfredo da Rocha Vianna e minha mãe Raimunda da Rocha Vianna. Meu irmão Léo acha que o nome era Raimunda Maria Vianna".

Talvez muitos nunca ouviram falar desse nome, mas com certeza, já ouviram falar dele. Alfredo Vianna Filho, ou mais conhecido como Pixinguinha, nasceu no dia 23 de abril (Dia Nacional do Choro – por que será?) de 1897. Mal começamos e já temos uma história engraçada. Até 1968, quando se comemorariam os 70 anos do músico, acreditava-se que ele tinha nascido em 1898. Foi então que Jacob do Bandolim foi até a Igreja de Santana, no Centro do Rio de Janeiro, e pediu uma cópia da certidão de batismo e descobriu esse “erro”. De qualquer forma, as comemorações de “70” anos continuaram.

Desde muito cedo Pixinguinha já era um gênio. Gravou pela primeira vez com 13 anos de idade e revolucionou o choro “quadrado” da época. A paixão pela música foi inciada pelo seu pai, flautista, de quem ganhou o primeiro instrumento, a flauta. Seu pai não se preocupava somente com a educação musical. Pixinguinha estudou durante um tempo no Colégio São Bento, mas matava aula para ir tocar no local na Lapa, onde teria seu primeiro emprego. Segundo ele: “Às vezes, ia lá com a farda do São Bento”.

Sua banda mais famosa teve um início curioso. Pixinguinha foi chamado pelo proprietário de um cinema famoso na época (Cinema Palais, na Av. Rio Branco) para que montasse uma banda para tocar na sala de espera. Nascia assim os Oito Batutas, integrado por Pixinguinha (flauta), Donga (violão – quem gravou o primeiro samba: Pelo Telefone), China, irmão de Pixinguinha (violão e canto), Nélson Alves (cavaquinho), Raul Palmieri (violão), Jacob Palmieri (bandola e reco-reco) e José Alves de Lima, Zezé (bandolim e ganzá). Como dizia o letreiro de forma profética: “A única orquestra que fala alto ao coração brasileiro”.

Em 1942, fez a última gravação como flautista. Ele nunca explicou direito a troca para o saxofone, embora se acredite que o consumo excessivo de bebida o teria feito perder a embocadura para flauta. De qualquer forma, Pixinguinha continuou brilhante no saxofone. Uma de suas parcerias de maior sucesso foi com Benedicto Lacerda, com quem enriqueceu mais ainda a nossa música. É esse o disco que aconselho hoje: Pixinguinha e Benedicto Lacerda, de 1966 (http://umquetenha.org/uqt/?p=5951).

Musicalmente, Pixinguinha sempre esteve à frente de seu tempo. Seus arranjos, suas composições saíam do normal, do comum da época. E como dissemos, seu brilhantismo não se limitou à flauta, ele foi um gênio no saxofone também. Compôs lindos e eternos choros, como Sofres Porque Queres, Carinhoso e Odeon. Críticas sofreu muitas; acusavam-no de sofrer influência do jazz e que sua música não seria nunca do gosto popular.

Preciso contar duas histórias curiosas. A primeira, em 1971, foi um daqueles momentos que levavam seus amigos a considerá-lo santo. Sua mulher, dona Beti, passou mal e foi internada. Dias depois, foi ele acometido de mais um problema cardíaco, foi também internado no mesmo hospital, mas, para que ela não percebesse que também estava doente, colocava um terno nos dias de visita e ia visitá-la como se estivesse vindo de casa.

A segunda é mais triste, pois se trata de sua morte. No dia 17 de fevereiro de 1973, quando se preparava para ser o padrinho de uma criança na Igreja Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, sofreu o último e definitivo enfarte. A Banda de Ipanema, que fazia naquele momento um dos seus mais animados desfiles, desfez-se imediatamente com a chegada da notícia. Tinha morrido um gênio, um deus.

Se você tem 15 volumes para falar de toda a música popular brasileira, fique certo de que é pouco. Mas se dispõe apenas do espaço de uma palavra, nem tudo está perdido; escreva depressa: Pixinguinha.” Ari Vasconcelos.

Se não tivesse nascido Vinícius, queria nascer Pixinguinha.” Vinícius de Moraes


A bênção, Pixinguinha

Tu que choraste na flauta

Todas as minhas mágoas de amor”

Vinícius de Moraes


Seguem dois vídeos. O primeiro, Benedicto Lacerda e Pixinguinha tocam Carinhoso. O segundo, Pixinguinha, Baden Powell e João da Baiana tocam Lamento. Salve São Pixinguinha!




sábado, 21 de agosto de 2010

Informação Especial

Queridos leitores,

eu tenho certo prazer em dar essa notícia. Isso porque torna o nosso nada-famoso blog diferente. Estamos contando com uma colaboradora internacional. Uma enviada especial de Paris. Mariana Carvalho. Nossa blogueira nos abandonou para aquela terra... Porém, mesmo longe ela disse que não deixará de contribuir.

Uma pequena homenagem a nossa blogueira e àquela horrível cidade onde ela se encontra...

Prado Pereira de Oliveira

O nome fundamental da música brasileira que hoje trago é, ninguém mais, ninguém menos, que João Gilberto.

João Gilberto Prado Pereira de Oliveira nasceu em Juazeiro (BH), em 1931. Foi com 14 anos que ele teve seu encontro com o violão, de quem jamais largou. Quando criança adorava ouvir o jazz norte-americano de Duke Ellington e da big-band de Tommy Dorsey, além de Dorival Caymmi e Dalva de Oliveira. Em Salvador, João tentou ser crooner e cantor de rádio. No entanto, foi no Rio de Janeiro que veio a conhecer o sucesso. Começou, em 1951, cantando no grupo Garotas da Lua, com quem veio a gravar dois discos.

Passou um período longe do Rio, indo morar em Porto Alegre e depois em Minas, com a família. Voltou em 1957 e passou a frequentar os pontos de encontro dos músicos, como a Boate Plaza. Se identificou muito bem com a nova concepção musical que estava surgindo, o que veio a resultar na bossa nova.

João Gilberto foi fundamental no surgimento da bossa nova. Começou ao acompanhar com seu violão a cantora Elizeth Cardoso no seu disco Canção do Amor Demais (como na música do Tom: Rua Nascimento Silva, cento e sete / Você ensinando para Elizeth as canções do Canção do Amor Demais). Depois disso, João lançou o seu disco fundamental, que é a minha indicação desse post, Chega de Saudade. Este veio a se tornar um marco da bossa nova; citado muitas vezes por ser inspirador, revolucionário e como referência, como afirmam Chico Buarque e Caetano Veloso. Com isso, João Gilberto conquistou não somente o Brasil, como o mundo. Tocando com diversos músicos fez discos fabulosos. É o caso do encontro com Stan Getz, do qual resultou Getz/Gilberto, disco ganhador do Grammy de 1964.

Sobre o Chega de Saudade (http://umquetenha.org/uqt/?p=2108), esse disco apresentava uma interpretação vocal intimista e uma nova batida de violão. Bastou para Gilberto ser revolucionário. Abandonando o estilo de cantar das rádios, famoso pelo vozeirão (associado ao samba-canção), adotou o cantar baixinho. Quanto o estilo de tocar, adotou uma batida que alterava o tradicional do samba. Consolidando, definitivamente, o estilo da bossa nova.

Uma duas curiosidades sobre João Gilberto. Existe o mito (digo mito, porque não sei se é verdade) de que ele possui um ouvido absoluto, capaz de ouvir sons imperceptíveis à maioria dos imortais. Um dia, gravando em um estúdio em Nova York ele disse que não mais poderia continuar por estar ouvindo uma britadeira que estava o atrapalhando. A britadeira foi descoberta a dois quarteirões do estúdio. A segunda curiosidade é real. João foi casado com a Miúcha. Para os que não sabem ela é irmã do Chico Buarque. O relacionamento deles não foi uma maravilha. E por ter feito mal a sua irmã, Chico compôs Maninha: Se lembra quando toda modinha falava de amor / pois nunca mais cantei, oh maninha / depois que ele chegou (…) Pois hoje só dá erva daninha / No chão que ele pisou.

A seguir, João Gilberto interpreta Pra Machucar Meu Coração, de Ary Barroso.


segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Canções Praieiras

Depois de um tempo postando pensamentos, não somente pela preguiça, mas também pela vontade de torná-los conhecidos, começo hoje uma série brasileira. Vou tentar trazer aqui grandes nomes da nossa música, não somente uma pequena biografia como seu disco fundamental (ao menos, no meu ponto de vista). Para começar, Dorival Caymmi!

Dorival é filho da Bahia, quem ele soube muito bem cantar. Desde menino cantava no coro da igreja. Veio a trabalhar como jornalista, mas sabia que essa não seria sua carreira. Em 1930, escreveu sua primeira canção. Em 1938, ele se mudou para o Rio de Janeiro em busca de trabalho. Sua carreira começava a ficar mais iluminada. Fez sucesso assim que chegou na Rádio Tupi, cantando uma de suas músicas mais famosas O que é que a baiana tem, com a qual Carmem Miranda tornaria ainda mais popular no filme Banana da Terra [1938]. Daí par frente, Caymmi entrava para os grandes nomes do Brasil com suas canções praieiras. Nos deixou recentemente, em 2008, com 94 anos.

Suas músicas falavam basicamente da Bahia, seus hábitos, estilos, costumes e tradições. Soube muito bem cantar o mar e os pescadores. Caymmi cantava aquilo que ele viveu, aquilo que via. Talvez foi o melhor compositor brasileiro nesse quesito. Ele cantou a Bahia, tornando-a popular na sociedade. Soube cantar, como ninguém, as mulheres ( A vizinha quando passa / Com seu vestido grená / Todo mundo diz que é boa / Mas como a vizinha não há), a comida ( Quem quiser vatapá, ô / Que procure fazer / Primeiro o fubá / Depois o dendê), a cultura dos terreiros (Dia dois de fevereiro / Dia de festa no mar / Eu quero se o primeiro / A saudar Iemanjá). Musicalmente, ficou famoso pela sua voz e por seu violão. Seu canto grave, melódico e sensual se encontrava perfeitamente com o seu violão vigoroso, rico e, se assim podemos falar, negro. A influência negra não é só perceptível em suas letras, sua música foi construída em cima da música africana, desde os violões aos tambores. Sua importância para a música brasileira foi fundamental, sendo uma das pedras fundamentais da mesma.

O Dorival é um gênio. Se eu pensar em música brasileira, eu vou sempre pensar em Dorival Caymmi. Ele é uma pessoa incrivelmente sensível, uma criação incrível.” Antônio Carlos Jobim

A indicação de hoje é Caymmi e Seu Violão, de 1959. Um dos primeiros cds lançados por Caymmi, tem algumas de suas músicas mais famosas, como A Lenda do Abaeté, Dois de Fevereiro e O Bem do Mar. Segue o link do fabuloso site Um que Tenha, no qual podemos encontrar esse disco: http://umquetenha.org/uqt/?p=2196 .

Abaixo, um trecho do documentário Um Certo Dorival Caymmi, no qual ele próprio conta o seu encontro com a Carmem Miranda.


terça-feira, 3 de agosto de 2010

Pensamento... (7)

A Racionalidade Irracional

Eu digo muitas vezes que o instinto serve melhor os animais do que a razão a nossa espécie. E o instinto serve melhor os animais porque é conservador, defende a vida. Se um animal come outro, come-o porque tem de comer, porque tem de viver; mas quando assistimos a cenas de lutas terríveis entre animais, o leão que persegue a gazela e que a morde e que a mata e que a devora, parece que o nosso coração sensível dirá «que coisa tão cruel». Não: quem se comporta com crueldade é o homem, não é o animal, aquilo não é crueldade; o animal não tortura, é o homem que tortura. Então o que eu critico é o comportamento do ser humano, um ser dotado de razão, razão disciplinadora, organizadora, mantenedora da vida, que deveria sê-lo e que não o é; o que eu critico é a facilidade com que o ser humano se corrompe, com que se torna maligno.

Aquela ideia que temos da esperança nas crianças, nos meninos e nas meninas pequenas, a ideia de que são seres aparentemente maravilhosos, de olhares puros, relativamente a essa ideia eu digo: pois sim, é tudo muito bonito, são de facto muito simpáticos, são adoráveis, mas deixemos que cresçam para sabermos quem realmente são. E quando crescem, sabemos que infelizmente muitas dessas inocentes crianças vão modificar-se. E por culpa de quê? É a sociedade a única responsável? Há questões de ordem hereditária? O que é que se passa dentro da cabeça das pessoas para serem uma coisa e passarem a ser outra?
Uma sociedade que instituiu, como valores a perseguir, esses que nós sabemos, o lucro, o êxito, o triunfo sobre o outro e todas estas coisas, essa sociedade coloca as pessoas numa situação em que acabam por pensar (se é que o dizem e não se limitam a agir) que todos os meios são bons para se alcançar aquilo que se quer.
Falámos muito ao longo destes últimos anos (e felizmente continuamos a falar) dos direitos humanos; simplesmente deixámos de falar de uma coisa muito simples, que são os deveres humanos, que são sempre deveres em relação aos outros, sobretudo. E é essa indiferença em relação ao outro, essa espécie de desprezo do outro, que eu me pergunto se tem algum sentido numa situação ou no quadro de existência de uma espécie que se diz racional. Isso, de facto, não posso entender, é uma das minhas grandes angústias.


José Saramago, in 'Diálogos com José Saramago'